BEM-ESTAR ANIMAL | REVISTA RAÇA MARCHADOR

BEM-ESTAR ANIMAL (parte 1 - Livre de fome, de sede e de subnutrição) 

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BEM-ESTAR ANIMAL (parte 1 - Livre de fome, de sede e de subnutrição) 

BEM-ESTAR ANIMAL (parte 1 - Livre de fome, de sede e de subnutrição) 

 Bem-estar animal, no nosso caso bem-estar eqüino, este é o assunto do momento e do futuro. Na verdade não é um assunto muito novo, posto que é do século passado, da década de 1980, quando os professores pesquisadores da Universidade de Cambridge na Inglaterra, depois de formarem o comitê de estudo das condições de vida dos animais de fazenda, estabeleceram os cinco princípios do bem-estar animal, mais conhecidos como as cinco liberdades. Esses princípios são os seguintes: 

        1) Livre de fome, de sede e de subnutrição. 

        2) Livre de dor, de ferimentos e de doenças.

         3) Livre de prolongado desconforto (térmico, olfativo, auditivo). 

        4) Livre de medo e angústia.

        5) Livre para manifestar seu comportamento natural.

        Estes princípios foram, aos poucos, sendo reconhecidos como válidos por praticamente todos os países, inclusive pela UNESCO da ONU. Alguns países primam por eles, outros nem tanto, mas é difícil quem os negue. Com base nesses princípios, no nosso país, o MAPA já vem regulamentando o transporte de animais, as condições de competições, etc. e até já editou cartilhas sobre o Bem-estar animal e sobre Boas Práticas de Manejo. Mas ainda é pouco porque há muito mais o que fazer. A ABQM se adiantou criando o fiscal de bem-estar animal nas exposições  e competições que ela organiza. A ABCCCrioulo teve que moderar algumas práticas no Freio de Ouro. ABCCMM não ficou muito atrás quando abriu certo espaço para o projeto Sela Verde e o atual (2019) CDT vem “marchando” com acertadas normas e medidas nesta direção.  Mas a estrada é longa. Questões de educação costumam ser assimiladas aos poucos. Entretanto Bem-estar animal já é matéria de estudos em vários cursos universitários. Todos devem contribuir, afinal é preciso reconhecer que os animais tem  seus direitos. Hoje já existe, em certos municípios, até delegacia dos direitos animais. O Bea veio para ficar e é uma estrada sem volta.

        Nesse contexto, o Bea pode ser visto como uma tentativa de conciliar, de um lado, os nossos interesses e, do outro, os direitos dos animais. Adquirir ou criar um eqüino é uma grande e longa responsabilidade que assumimos. Trata-se do compromisso da posse responsável. Esta responsabilidade pode durar anos, décadas, tanto quanto durar a vida do animal. Antes de criarmos ou de adquirirmos um cavalo primeiro é bom pensarmos nisso, nesse compromisso com a posse responsável e nos princípios do Bea que devemos seguir e propiciar. No mundo civilizado abandono animal é crime, bem como maus tratos também.

        Em cada edição desta revista vamos abordar um princípio do Bea. Nesta edição abordaremos o primeiro.

        Livre de fome, de sede e de subnutrição.

        Este primeiro princípio parece óbvio, mas na realidade muitos criadores e proprietários, sem se dar conta, não o respeitam devidamente. Dos três aspectos deste princípio o do livre de subnutrição é o menos desrespeitado. Mas o da fome e o da sede são os mais desrespeitados, mais problemáticos e mais incorridos, por mais que, a princípio, não pareçam. Vejamos um por um.

        Livre de fome

        O criador ou proprietário até pode dizer q o animal dele nunca passa fome, pois está bonito, em bom estado físico ou até relativamente gordo. Isto, entretanto, não significa necessariamente não passar fome e sim de não estar sub-nutrido. Não passar fome significa não passar privação de saciar a vontade de comer sempre que ela ocorrer. É o que acontece, por exemplo, com animais embaiados, mesmo que em semi-estabulação, que são recolhidos e alimentados com ração concentrada ao final do dia e depois só no outro dia de manhã cedo antes de serem soltos novamente no pasto. Muitas vezes são recolhidos pelas 17:30 h da tarde e soltos no outro dia pelas 7 ou 8 horas da manhã. É que o encarregado desta função geralmente segue os horários da legislação trabalhista, a qual prevê não obrigatoriedade de trabalhar mais do que 8 horas/dia. Lembrando que não se deve fornecer mais do que 3 kg/vez, a ração concentrada, como o próprio nome indica tem pouco volume e, portanto, o animal a consome toda em pouco tempo.  Em média os 3 kg não levam mais do que uns 30 minutos para serem ingeridos. Agora vejamos, ficar sem comer das 18 horas até as 7 horas do outro dia são 11 horas em jejum. Isto é tempo demais, isto é completamente antinatural, contra a natureza e contra as necessidades fisiológicas do cavalo.  Abaixo explico melhor.

         "Mas meu cavalo está gordinho", diz o criador. Todavia isso não significa que não passe fome. Pela natureza o cavalo não deve ficar mais do que seis a oito horas sem comer, principalmente sem comer algo que seja volumoso, que tenha bastante fibra para um mais lento e melhor trânsito no trato digestivo. É assim na natureza, é assim nos cavalos que vivem não confinados, selvagens ou não.  Com pequenas interrupções, pastam praticamente o dia todo e só param mesmo de pastar lá pela meia noite. E lá pelas 5 ou 6 horas da manhã, quando recém começa a clarear o dia, já estão pastando novamente.  É que o eqüino, como animal presa, evoluiu para um estômago pequeno, pois a velocidade era a sua principal defesa se precisasse se afastar rápido de um predador. Conseqüentemente não podia ter um estômago grande, como o do bovino, para ficar pesado. O cavalo precisa quase constantemente encher e esvaziar seu relativamente pequeno estômago, para assim estar sempre leve e sempre alimentado, com energia aportada, disponível, mas não muito armazenada na forma bruta e primária dos alimentos ainda não digeridos. Armazenar muito alimento no estômago sem ainda estar digerido levaria a aumento de peso, levaria a menos rapidez e menos resistência na hora de se afastar dos predadores. Vi isso quando estudei os últimos cavalos selvagens de Roraima. Ao detectarem o menor sinal de qualquer perigo, primeiro alertavam os demais do grupo, em seguida defecavam rapidamente e só depois, mais leves, começavam a correr quase sem parar por mais de uma hora. Estratégia de sobrevivência de uma espécie presa, isto é, predada e sem chifres para se defender. Evolutivamente apostaram mais na velocidade como primeira estratégia de sobrevivência. 

      Mas alguns criadores e proprietários podem dizer, -- e daí? O que tem isso a ver com o dia a dia dos meus cavalos?  Praticamente não há mais predadores dos cavalos domésticos! Pois é, mas o cérebro do cavalo não sabe disso. A fisiologia do cavalo não sabe disso. Ela continua fazendo com que sejam secretados, de maneira quase constante, sucos gástricos no estômago para digerir alimentos. Estes alimentos, entretanto, devem ser aportados em relativamente pequenas quantidades, mas de maneira quase constantemente ou, pelo menos, sem interrupção prolongada. Ficar em jejum por mais de 6 a 8 horas leva à fome e ao surgimento, lento e gradativo, de lesões nas paredes do estômago. O acúmulo de suco gástrico, que é produzido e liberado quase constantemente, quando encontra o estômago vazio, portanto sem ter o que digerir, tende, com o tempo, a corroer as próprias paredes deste compartimento digestivo. Com o tempo estas corrosões se tornam lesões as quais, por sua vez, se transformam em gastrites e, depois, até em úlceras no estômago.  Os que não acreditam nisso basta verificarem as constatações de alto índice de gastrite e de úlceras no estômago de cavalos permanentemente estabulados e alimentados só três a quatro vezes por dia. Isso é muito comum nos jóqueis clubes e hípicas mundo afora, onde a incidência desses problemas de saúde é sempre alta e muito maior dos que nos cavalos que vivem a campo.

        Bem fazem os proprietários que tendo que confinar ou semi-confinar seus animais, fornecem na última refeição do dia uma grande quantidade de volumoso (verde e/ou feno e/ou cascas de frutas) para que o cavalo fique a ingerir alimentos até altas horas da noite e com isso conseguem diminuir o problema do estômago vazio por muito tempo seguido. 

        Livre de sede

        Agora vejamos a questão da sede. Na mesma condição de semi-estabulação descrita acima, muitos manejos, até por questão de higiene, adotam o critério de fornecer água através de um balde cheio na cocheira, quando o cavalo é recolhido. Tendo que repor a água diariamente, o encarregado seria levado a limpar o balde todos os dias. Desta forma, nesta prática, o encarregado é induzido a uma limpeza praticamente automática do recipiente de água. Coisa que nem sempre acontece se o recipiente for fixo na cocheira. Mas isso é como tentar prevenir uma deficiência de boas práticas de manejo adotando outra prática que também não é boa. O melhor é o cavalo ter livre acesso à água, em boas condições, sempre que sentir sede. Ele não deve ficar limitado à disponibilidade de apenas um balde de água para toda a noite.

        Façamos uma comparação. Um balde de água para o cavalo corresponderia para nós, aproximadamente, um copo de água junto ou após termos jantado. Mesmo tendo bebido no jantar ou logo após ele, quantas vezes já nos levantamos à noite para beber mais água? E se o balde estiver vazio? É sede na certa.

        A água deve estar permanentemente disponível, limpa e de boa qualidade.

        Pensem nessas coisas todas e até o próximo princípio que será abordado no Bem-estar Animal II. Abraço e bem-estar para todos.

 

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Raça Marchador Edição 2

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